26 junho 2005

A idiotice da política de cotas

O Globo - Prosa & Verso - pg. 01 - 20/6
‘A democracia racial infelizmente virou vilã’Luciano Trigo
Na contracorrente do pensamento dominante no Brasil sobre raças, o antropólogo inglês Peter Fry expõe seu pensamento em “A persistência da raça — Ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África austral” (Civilização Brasileira). Com base na sua experiência em países africanos e numa longa reflexão sobre a questão racial brasileira, Fry afirma que a raça é um mito social poderoso, que já causou danos incalculáveis, principalmente quando adquire a força da lei. Contrário à intervenção estatal na definição “racial” dos cidadãos, ele indaga se a ação afirmativa e a política de cotas não terão como efeito negar um Brasil híbrido a favor de um Brasil de raças distintas. Especial para O GLOBOEm “A persistência da raça” você revela desconforto com a análise hoje dominante da questão racial no Brasil. Poderia resumir as razões desse desconforto? PETER FRY: Na análise dominante da questão racial, o Brasil é imaginado como um país de duas “raças” em conflito. Não vejo este Brasil nem nas etnografias e muito menos na minha experiência de cidadão. Mas a repetição deste discurso faz com que ele se torne uma profecia que pode ser cumprida. Queremos uma sociedade de “raças” distintas? A constatação da existência de preconceito e discriminação racial é correta. Aliás, tais preconceitos e discriminações são infelizmente universais. Mas esta constatação não deveria implicar a rejeição da utopia de uma sociedade a-racista. O Brasil é um dos poucos países que construíram uma ideologia nacional a-racista. Essa ideologia passou a ser chamada de democracia racial. Infelizmente a democracia racial virou vilã, em vez do racismo em si. Com a política de cotas, pela primeira vez a raça virou no Brasil uma entidade jurídica. Que impactos essa política pode ter sobre as relações raciais a longo prazo? FRY: Quando o Estado institui raça como critério para a distribuição de direitos, a tendência é de fortalecer a crença em raças e, em conseqüência, o racismo. O caminho de volta para uma ideologia a-racista se torna muito difícil de tomar. Em todos os lugares do mundo onde Estados seguiram o caminho de racializar a legislação, as conseqüências foram nefastas. África do Sul e Ruanda talvez sejam os exemplos mais extremos e mais terríveis. Espero que a forte ideologia da mistura vença a longo prazo. Mas não sou otimista neste sentido. Você critica a agenda política do movimento negro, segundo a qual somente os negros podem falar dos seus problemas. Quais os perigos disso? FRY: Não me cabe criticar a agenda política do movimento negro. Estou tentando engajar a sociedade como um todo. Os movimentos de minorias mais bem-sucedidos são aqueles que conseguem angariar o apoio da sociedade como um todo, e transformar atitudes negativas em atitudes positivas. Os movimentos das mulheres e dos homossexuais são exemplos disso. Você considera que o Brasil está copiando o modelo americano de abordagem da questão racial, com a política de cotas e a ação afirmativa? FRY: Na verdade a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu contra as cotas per se. Apenas permite que se leve raça em consideração na alocação de vagas universitárias. Ao introduzir cotas, o Brasil inovou. Mesmo assim, o Brasil está mimeticamente falando de “raça”, como se tivesse as mesmas características dos Estados Unidos, onde quem tem uma gota de “sangue negro” é considerado negro, e onde o pertencimento racial transmite valores, estilos e modos de vidas distintos. Por exemplo: existe nos EUA uma maneira de falar própria dos negros. Respondendo ao telefone, você sabe a “raça” de quem fala. Aqui se pode adivinhar talvez o gênero da pessoa, a sua região de origem e o seu grau de instrução apenas. Nunca a cor da sua pele ou a sua “identidade racial”. Avaliar a política de cotas é tarefa muito difícil, e é cedo para dizer qualquer coisa. Eu apenas queria chamar a atenção para o fato de que as cotas instituem a existência de categorias raciais jurídicas: indígena, negro e não-negro (branco?). Devemos nos indagar sobre as possíveis conseqüências disso. Temo que isso acabe fortalecendo um Brasil imaginado não mais como país mestiço, mas como uma nação de raças estanques. Os mais otimistas pensam que o Brasil em nada mudará. Sou mais pessimista.Vítimas podem virar algozes, diz antropólogo Em seu livro, Peter Fry observa que a racialização de toda ordem tem efeito nocivo em qualquer sociedade
A adoção crescente de um modelo bipolar, que divide a sociedade em negros e brancos, no lugar de um modelo plural, que leva em conta a nossa mestiçagem, já está gerando algumas confusões. O que achou da polêmica provocada pelo craque Ronaldo quando declarou na imprensa que é branco?
PETER FRY: Ronaldo disse que é branco. Para saber se ele tem razão, poderíamos mandar a fotografia dele para a Comissão da Universidade de Brasília, que decide se candidatos ao vestibular são negros ou não. De acordo com a Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário, todo cidadão tem o direito de dizer quem é. Os americanos acreditam que uma gota de “sangue negro” enegrece. No Brasil se achava que o “sangue branco” embranquecesse. Qual é a ideologia mais estranha? Ronaldo pode ser da cor que ele quiser.
Já que falamos de futebol, o que achou da recente prisão de um jogador argentino por ter ofendido em campo o jogador brasileiro Grafiti? Você considera que o racismo pode ser extinto através de punições rigorosas, como a prisão? Ou isso só servirá para acirrar as tensões raciais?
FRY: Racismo é criminoso. O problema é que a lei anti-racista é tão draconiana — levando à prisão, por exemplo — que nem as vítimas do racismo nem os técnicos da Justiça gostam sempre de acioná-la. Não seriam mais eficazes punições mais apropriadas ao crime, como indenizações, serviço social em bairros pobres e negros, por exemplo? Criminalizar o racismo não o elimina. Mas pelo menos marca o seu caráter odioso.
Faz parte do processo de “racialização” da sociedade brasileira a descoberta de uma classe média negra pela mídia. Em seu livro, você considera isso positivo, já que difunde padrões estéticos diferentes. Mas isso não seria também motivado por razões de mercado, isto é, fazer essa classe consumir mais, introjetando valores ligados ao consumismo “branco”?
FRY: A única diferença mais ou menos objetiva entre nós são as nossas aparências. Viva a diferença estética! O consumismo não tem cor. Vivemos numa sociedade onde o mercado, ao buscar lucro, marca e dá substância às diferenças de toda ordem. Quem quiser escapar do mercado terá que seguir a trilha de Robinson Crusoé!
A autodepreciação que vitimava muitos negros estaria sendo compensada por uma auto-exaltação radical? Não se estaria praticando um racismo com sinais invertidos?
FRY: O que tento argumentar no meu livro é que a racialização de toda ordem é nociva. As vítimas de hoje podem sempre ser os algozes de amanhã. Detesto toda forma de exaltar ou intimidar em termos raciais. Ao mesmo tempo, é fundamental que todos se sintam bem com as aparências que têm. É por isso que vejo com bons olhos o mercado de embelezamento de aparências diversas. É por isso também que é essencial informar a população sobre a ausência de uma relação entre aparência e a composição genética dos indivíduos.
Apesar da lógica de sua argumentação em relação à democracia racial como um alvo a ser perseguido, como convencer os negros, que desde a escravidão sofrem a discriminação e o preconceito, de que eles devem insistir nessa utopia, em vez de lutar de forma mais afirmativa pelos seus direitos? Eles não estão, de fato, ganhando mobilidade social com essa nova atitude?
FRY: Boa pergunta! Mesmo assim, não é verdade que todos os brasileiros mais escuros entendem o a-racismo brasileiro como negativo. Muitos derivam a sua dignidade como cidadãos do fato de poderem se ver e serem vistos como iguais. Não há dúvida de que a ação afirmativa produz mobilidade educacional para alguns poucos, que tiveram condições para concluir o ensino médio. Os cargos governamentais que surgem no bojo dos programas de ação afirmativa também oferecem oportunidades para ascensão social. Para gerir mobilidade social sem racializar, seria necessário um investimento maciço em educação nos territórios mais pobres e, portanto, mais negros do país. Seria necessário também eliminar os preconceitos que prejudicam as pessoas mais escuras no mercado de trabalho.
Você mudou sua visão sobre a questão racial depois de sua segunda visita à África. Fale sobre isso.
FRY: Conheci a Rodésia como colônia da Grã-Bretanha racialmente dividida. Voltei para o mesmo país dez anos depois da independência. Neste Zimbábue achei as divisões “raciais” pouco mudadas e a crença em diferenças raciais pouco abalada. O presidente, Robert Mugabe, tem uma interpretação racista para o fracasso do seu governo: complô dos brancos. Vendo a persistência de crenças forjadas na lei, tive mais clareza sobre a dificuldade de reverter a racialização promovida pelos Estados nacionais. Por outro lado, conheci Moçambique 15 anos depois da sua independência. Naquele país, que durante os últimos anos do governo colonial experimentou um crescente a-racismo, e que viveu um a-racismo muito forte no socialismo de Samora Machel, a suposta raça das pessoas interfere menos na vida dos cidadãos do que em Zimbábue. Assim me dei conta de que a ideologia e a Constituição brasileiras a-racistas representavam um patrimônio ímpar.
Como Gilberto Freyre influenciou seu trabalho, em diferentes momentos?
FRY: Li algo de Gilberto Freyre na época em que ele apoiava as políticas salazaristas de não admitir a possibilidade da independência das colônias. Achei horrível. Ele avançava uma justificativa culturalista para a permanência da dominação portuguesa na África. Mais tarde, já no Brasil, me juntei ao coro crítico paulista, achando Freyre grandemente responsável pela propagação da idéia de que no Brasil não havia racismo. Mais tarde, e sobretudo depois de conhecer relativamente bem a África de língua portuguesa, reconheci que ele tinha muita razão quando contrastava o colonialismo dos portugueses ao colonialismo dos britânicos, contrapondo assimilação versus segregação. Além disso, me beneficiei do livro de Ricardo Benzaquem de Araújo sobre Freyre (“Guerra e paz: Casa-grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30”). Percebi que o meu desgosto pelo posicionamento pró-Salazar de Freyre na década de 1960 tinha contaminado a minha leitura de “Casa-grande & senzala”. Este livro não nega a crueldade da escravidão. Pelo contrário, parte da constatação de uma sociedade fundada em antagonismos culturais e econômicos, entre “sadistas e masoquistas, doutores e analfabetos, indivíduos de cultura predominantemente européia e outros de cultura principalmente africana e ameríndia”. Freyre argumentou que esses antagonismos entre senhores e escravos eram suavizados pelo contato íntimo.
A diversidade é um tema em evidência no mundo, não apenas em relação à questão racial. Como avalia a recente legislação francesa que proíbe estudantes de irem para a escola vestidos com roupas que ostentem a sua religiosidade? O esforço da sociedade deve ser para apagar ou realçar as diferenças entre diferentes grupos culturais, étnicos, religiosos etc?
FRY: O grande apoio da sociedade francesa à legislação do Governo contra o uso do véu nas escolas mostra quão forte é o a-racismo naquele país de cidadãos supostamente iguais perante a lei, e onde a escola laica é entendida como uma das instituições mais importantes para garantir essa igualdade. Mas também demonstra uma espécie de “atitude avestruz” perante a crescente visibilidade do Islã na França. Pessoalmente penso que exageraram na dose. Não se pode apagar as diferenças por decreto. Bastava não incitá-las. Aliás, seria interessante o Brasil olhar com mais cuidado as políticas raciais francesas para avaliar a sua eficácia em promover a mobilidade social, em vez de olhar exclusivamente para os EUA. Mas, como argumento no meu livro, tanto os franceses quanto os brasileiros partem de posições ideológicas minoritárias num mundo dominado por modelos multiculturalistas, tidos como naturais e corretos pelos anglo-saxões.
LUCIANO TRIGO é jornalista O preconceito existe e pode matar
Verena Alberti
A questão racial no Brasil não é simples. De um lado, temos a propalada “democracia racial”, que faz parte de um projeto em certa medida bem-sucedido de construção de nossa identidade nacional. Nos anos 30, com Getulio Vargas no poder, insistiu-se bastante na harmoniosa relação entre as raças que compunham a nação. Havia até um Dia da Raça, com direito a desfiles de crianças de colégio, enaltecendo a pátria e a raça brasileiras. Em 1939, Ary Barroso compôs “Aquarela do Brasil”, nosso quase-hino nacional que louva a miscigenação (a aquarela, justamente). Mas essa mistura harmoniosa não era equânime: nesse momento, e nas décadas seguintes, era comum falar da “contribuição” do negro e do índio à cultura nacional. Como se o cerne da nação fosse o branco. O clássico “Casa-grande & senzala”, de Gilberto Freyre, publicado em 1933, é um exemplo disso. Apesar do título, Freyre não se dedica propriamente à senzala. A “casa-grande” muitas vezes aparece como sinônimo de “Brasil”, e seu proprietário, de “brasileiro”: a ama negra, o negro velho, a mucama, a cozinheira “se sucediam na vida do brasileiro de outrora”, diz Freyre.
Procurando denunciar o chamado “mito da democracia racial”, surgiu, nos anos 70, o que hoje denominamos “movimento negro contemporâneo”. Há um ano, o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas (CPDOC-FGV) vem realizando entrevistas gravadas com lideranças desse movimento, em diferentes estados do Brasil, com o objetivo de constituir um registro de sua história e de trazer ao debate sobre a questão racial no Brasil a contribuição daqueles que optaram por atuar primordialmente nessa esfera. As entrevistas, ainda em fase de tratamento para serem abertas à consulta, possibilitam diferentes perspectivas de análise.
A despeito de a miscigenação racial ser uma das características mais valorizadas de nossa identidade nacional, não podemos negar que existe racismo no Brasil. O racismo é a idéia de superioridade de uma raça em relação a outra(s), e só se consubstancia porque uma raça se sente superior, e a outra se sente inferior. As entrevistas com lideranças do movimento negro contêm várias passagens expressivas, que mostram como nossa cultura está impregnada dessa lógica superior-inferior. Veja-se o relato de Justo Evangelista, nascido em 1935, vereador de Itapecurumirim, no Maranhão, na década de 1990: “Eu cheguei em Chapadinha, era um festejo, tinha um leilão e eu estava em pé, atrás de um deputado, no meio de muita gente. O cara que estava gritando no leilão me conhecia e disse: ‘Agora, para gritar o leilão tem um deputado e tem um vereador.’ O deputado olhou para trás, passou a vista por cima de mim assim, e nunca me enxergou. Porque era um negro. Ele nem imaginava que eu era vereador, porque não parecia mesmo vereador.” A “invisibilidade” do negro, que necessita do branco, talvez seja a forma mais recorrente com que se declara, em nosso país, sua “inferioridade”.
Muitos insistem que no Brasil não há preconceito de raça ou cor, e sim preconceito social: é o fato de a maioria dos negros ser pobre que explica o racismo. Proponho que avancemos um passo nessa reflexão: não importa a causa (admitamos que seja social), o fato é que ela produz o preconceito contra o afro-descendente. Preconceito que não só existe, como pode matar. De que morreu, em fevereiro do ano passado, o dentista negro Flávio Sant’Anna, em São Paulo? Suspeito de assalto, naquele momento ele não era “invisível”, mas uma ameaça ( Flávio foi assassinado com dois tiros no peito por policiais que o confundiram com um ladrão ).
E se vivêssemos em uma sociedade onde fosse comum haver dentistas, médicos, professores, engenheiros, juízes, diplomatas etc negros? Favorecer o acesso das populações mais pobres ao ensino superior não seria uma forma de “queimar etapas” nesse sentido? As entrevistas realizadas pelo CPDOC mostram que nem sempre as políticas de ação afirmativa, entre elas as cotas para ingresso na universidade, foram uma bandeira comum no movimento. Mas com o tempo, o debate suscitado pelas cotas acabou provocando aquilo que as lideranças almejavam desde o início: despertar a sociedade para a questão racial. Essa discussão é sem dúvida mais decisiva para o movimento do que as próprias cotas, vistas como medidas emergenciais e cuja aplicação deve ser aprimorada a cada nova experiência.
O importante é a sociedade brasileira empenhar-se em encontrar caminhos que nos levem a uma efetiva democracia racial. Reconhecer as diferenças sem que haja “superior” ou “inferior” não significa renunciar à nossa identidade miscigenada. VERENA ALBERTI é pesquisadora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas, onde coordena o projeto “História do movimento negro no Brasil: constituição de acervo de entrevistas”, que conta com a participação de Amílcar Araújo Pereira, aluno do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais da UerjNegros no Brasil são tema de novos livrosAlém do livro do antropólogo Peter Fry, pelo menos outras cinco obras — uma delas de ficção — que tomam como tema a história dos negros no Brasil (e no mundo) acabaram de ser lançadas ou serão em breve. O que mostra que ainda há muito da História a ser contado, recontado, pesquisado, esmiuçado. A mesma Civilização Brasileira que publica o livro de Fry tem quatro obras sobre o tema. Em abril, lançou “Escravos e libertos no Brasil colonial”, de A. J. R. Russell-Wood, um clássico na área, com prefácio especial para essa edição. No fim de maio, chegou “Memórias do cativeiro: identidade, trabalho e cidadania no pós-abolição”, de Ana Maria Lugão Rios e Hebe Maria Mattos, uma pesquisa feita a partir de resumos de entrevistas com descendentes de escravos. “Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipadas”, dos historiadores Rebecca J. Scott, Frederick Cooper e Thomas C. Holt, traça um painel sobre a transição da escravidão em diversos países. E na próxima semana chega às livrarias “Tráfico, cativeiro e liberdade”, organizado por Manolo Florentino, que mapeia as etapas principais da escravidão no Rio de Janeiro. Tema semelhante ao livro “De costa a costa — Escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860)”, de Jaime Rodrigues, que a Companhia das Letras lança no fim do mês. E na semana que vem a Record bota na praça “Contos negreiros”, em que Marcelino Freire, nome celebrado da nova geração de escritores, põe o negro como personagem de seus textos, que discutem racismo, homossexualismo e conflito de classes.Trechos do livro 'A perseverança da raça', de Peter Fry
“Quem é branco e escreve sobre racismo sem adotar as palavras de ordem dos movimentos negros e seus aliados está sempre sujeito a críticas que sugerem que a sua ‘raça’ impede uma visão clara da questão. (Essas críticas) achatam demais, (pois as) relações sociais afetam todos nós, independentemente de nossa aparência. (...) Ao contrário da ortodoxia que repudia a ‘democracia racial’ como apenas uma farsa ou máscara que ilude o povo, escondendo o racismo e impedindo a formação de um movimento negro de massa, prefiro pensá-la como um ideal a ser alcançado”
“A celebração da ‘diversidade’ tão em moda nos dias atuais redunda, na prática, na celebração de ‘raças’ ou seu eufemismo politicamente correto, ‘etnias’. Políticas públicas denominadas ‘ação afirmativa’ são implementadas para reduzir as desigualdades ‘raciais’. Mas como essas políticas exigem dos beneficiados uma identidade racial, a crença em raças sai fortalecida. Por mais bem-intencionada que seja a ação afirmativa, ela tem como conseqüência lógica o fortalecimento do mito racial”

19 junho 2005

Ninguém é bonzinho

Psiquiatra afirma que as pessoas sedividem em egoístas e generosas porfraqueza, e não por vontade própria.Nenhuma delas merece aplauso
Camilo Vannuchi
Uma trama diabólica. É assim que Flávio Gikovate, 63 anos, define a divisão do Mundo entre egoístas e generosos no livro O mal, o bem e mais além (MG Editores, 160 págs.,R$ 29,70), com lançamento previsto para a terça-feira 14 em São Paulo. Sua experiência em consultório o fez perceber que quase todos os casais – e também as relações sociais e entre amigos – fundamentam sua relação nas trocas estabelecidas entre uma personalidade mais exigente, barulhenta e emocionalmente sensível e outra mais madura, compreensiva ao extremo. Divisão um tanto maniqueísta? Gikovate diz que não. “A culpa não é minha se existem apenas dois tipos de pessoas”, afirma. A novidade presente no livro é que, segundo ele, os generosos não formam o time do bem, como julga o senso comum, nem os egoístas são os vilões. Sua hipótese é de que as diferentes reações a sentimentos humanos, como vaidade, inveja, culpa e humilhação, acabam por determinar o perfil de cada indivíduo. A miséria dos egoístas está no fato de que eles dependem dos generosos, assim como os generosos precisam dos egoístas.
ISTOÉ – O que o levou a escrever sobre a velha dicotomia entre o bem e o mal? Flávio Gikovate – O tema da moral está presente há algum tempo em meu trabalho, mas antes tratava o egoísmo como algo pior do que a generosidade. Em 1976, escrevi que havia dois tipos de amor, por diferença e por semelhança. A grande maioria dos casais se estabelecem entre pessoas antagônicas. Hoje, a moda é falar em alma gêmea, mas, na prática, as pessoas continuam se encantando por oposição e dizendo que os opostos se atraem. A atração por opostos tem muitas causas, desde a dificuldade de auto-estima (não gostar do seu jeito de ser e se encantar com o outro) até o medo da paixão, muito intensa, estabelecida entre semelhantes. A paixão, diferentemente da maioria das relações, se dá entre pessoas parecidas.
ISTOÉ – Por quê?Gikovate – Paixão é amor em grande intensidade mais medo em grande intensidade. O coração não bate por amor, mas por medo. E muita gente acha que, quando a paixão vai passando, é como se o amor diminuísse também. Apenas o medo diminui. Mas muitas paixões terminam quando os amantes não suportam o que chamo de medo da felicidade. Ele está na raiz do pensamento supersticioso. O olho gordo tem cinco mil anos. O medo da felicidade surge quando estamos no meio de muita coisa boa e temos a impressão de que um raio vai cair na nossa cabeça. Muitos preferem se unir a uma pessoa diferente de si para garantir um pouco de irritação. Ligar-se a uma pessoa antagônica encanta e irrita ao mesmo tempo. Na paixão, as afinidades são enormes, os dois se encaixam maravilhosamente bem e o pânico se instala. As separações ocorrem por isso, e não por causa dos obstáculos.
ISTOÉ – Por isso a maioria dos casais é formada por um egoísta e um generoso?Gikovate – Entre dois egoístas, a relação é impossível. Acontecem muitas brigas. Não dá problema psiquiátrico, mas ortopédico (risos). Quando o egoísta é casado com um generoso, pelo menos este coloca panos quentes. Quase sempre, apaixão ocorre entre dois generosos que acabam deixando de ser generosos.Seriam casais perfeitos se o generoso, tão atrapalhado psicologicamente quantoo egoísta, aprendesse a receber.
ISTOÉ – Como são, afinal, os generosos e os egoístas? Gikovate – O egoísta é estourado, ciumento, gosta de fazer autopromoção, é extrovertido porque não consegue ficar sozinho e intolerante à frustração. Faz o diabo para não se frustrar, inclusive passar por cima dos direitos dos outros. A partir dos seis anos, a criança é capaz de abstrair e se colocar no lugar do outro. Se uma criança vê um menino em uma cadeira de rodas e se imagina em seu lugar, sofrerá com isso. E uma criança que não suporta essa dor interromperá esse processo. Fica com uma visão unilateral do mundo e perpetua um padrão egocêntrico. São pessoas invejosas, embora se mostrem sempre muito bem. Isso confunde até hoje os psicanalistas, que fundaram o conceito de narcisismo.
ISTOÉ – O narcisismo não existe?Gikovate – É um conceito usado para descrever pessoas que têm a posturado “eu sou bacana”, como se elas tivessem realmente esse juízo de si,o que não é verdade. Elas sabem que são um blefe. Fingem superioridadepor se saberem invejosas e ciumentas. Elas precisam receber mais do que recebem. Matematicamente, são pessoas falidas. Podem botar a banca quefor, mas são fracas.
ISTOÉ – E quem são os generosos e por que não devem ser encaradoscomo representantes do bem? Gikovate – O generoso é o inverso do egoísta. Não reage nem quando deveria, não suporta provocar dor na outra pessoa, aceita dócil um monte de contrariedade. Fala um monte de sim quando deveria falar não. Quando você tem oito anos e é um menino bonzinho e seu irmão começa a chorar porque quer uma bola que é sua, você não agüenta o remorso que imagina que vai sentir e dá a bola para ele. Mas não era isso que você queria fazer. Aí a mãe vem e diz que você é legal. O elogio estimula a vaidade, que se acopla à generosidade. É mais uma vez um truque para se sentir superior à custa de uma fraqueza. O generoso também inveja o egoísta, que é capaz de dizer não e goza os prazeres da vida, enquanto o generoso é todo cheio de pudores e constrangimentos. Acabam ficando duas porcarias.
ISTOÉ – A culpa é da sociedade que valoriza a concessão como virtude? Gikovate – Para ter um filho bonzinho, tem que ter um filho pestinha. A mãe poderia chegar para o filho que quer a bola e dizer “não enche o saco, a bola é do seu irmão”. Mas ao reforçar a generosidade de um dos filhos, ela reforça também o egoísmo do outro. Não existe generosidade sem egoísmo. De vez em quando eu assisto a esses programas evangélicos na televisão e penso no que seria deles sem o Satanás. Não haveria programa. Essa dualidade é patética, ridícula. Para poder ser o bonzinho, o bacana, ir para o céu e ser uma teta na qual todos mamam, precisa haver os parasitas que vão lá mamar. Há uma aliança no domínio das elites entre o generoso e o egoísta. Comparo com o sacerdote e o guerreiro. O sacerdote seria o bonzinho e o guerreiro, o mau. Os dois sempre se freqüentaram e compartilharam poder.
ISTOÉ – Lula é mais parecido com o guerreiro ou com o sacerdote? Gikovate – Por seu gênio e temperamento, Lula seria generoso. Mas uma vez no poder... Uma vez li uma entrevista de um filósofo francês que dizia que não existe esquerda no poder. Esquerda, por definição, é uma coisa que está fora do poder, gerando idéias. O poder não é lugar para idéias, mas um local de ação, onde as idéias geradas do lado de fora podem ser aproveitadas. A generosidade é praticamente impossível no poder. Lula é um governante que, como todos, precisa fazer alianças. E nem todos os amigos são generosos. As pessoas mudam de caráter com o passar dos anos e pioram.
ISTOÉ – O sr. ainda se refere ao Lula?Gikovate – Não. Estou falando de maneira geral. Você já ouviu alguém dizer que quem não foi socialista na mocidade e virou um indivíduo pragmático aos 45 anos é um idiota. Como se o idealismo fosse um defeito juvenil que deve ser curado com o tempo até se transformar em egoísmo. Acredito que existe uma terceira instituição para além dessa dualidade. É um indivíduo moralmente sofisticado, nem egoísta nem generoso, que tolera bem a frustração e não sente culpas indevidas, que eu chamo de justo.
ISTOÉ – Será o auge do individualismo?Gikovate – No bom sentido da palavra. Individualismo significa auto-suficiência. Egoísta e generoso não são auto-suficientes. O justo sim. Vai estabelecer relacionamentos nos quais não haverá necessidade de jogos de poder. Ele não dá mais do que recebe nem recebe mais do que dá. O interessante é que a sociedade moderna tende na direção do indivíduo justo.
ISTOÉ – Não caminha para um mundo mais egoísta?Gikovate – Parece que sim, por causa do elogio a essa cultura superficial,ligada à vaidade e à aparência. Mas o fato é que não cabe todo mundo nesse sistema. Não há nem emprego para todos nem tetas suficientes. Quando pensoem individualismo, comparo com o iPod. Você coloca centenas de músicas alidentro e vai para o metrô, onde balança a um som que só você ouve. Dos dez milhões de habitantes de Nova York, três milhões moram sozinhas. São Paulo também é assim. Está se tornando o país dos cachorros. Se os generosos começarem a trocar seus pares egoístas por cachorros, será outro mundo. Até porque os cachorros retribuem. Ao vender iPods, os amantes da sociedade de consumo estão fabricando o germe da destruição do próprio capitalismo. O indivíduo que está mais auto-suficiente sozinho vai consumir menos, porque sua vaidade precisa menos de instrumentos externos. Estará mais perto da felicidade democrática e distante da felicidade aristocrática.
ISTOÉ – Qual a diferença?Gikovate – Não dá para privilegiar coisas que não dão para todo mundo. Até os intelectuais cometem esse erro. Elementos de felicidade aristocrática, como a beleza, a riqueza e a inteligência, condenam à infelicidade o feio, o pobre, o que não teve acesso à educação. Sou favorável às felicidades democráticas, aquelas que dão para todo mundo, como o amor, por exemplo. O justo se satisfaz com isso. Ele não condena ninguém à infelicidade.
ISTOÉ – Como alcançar o mundo dos justos? Gikovate – Todos têm que evoluir. As relações de qualidade serão as únicas estáveis, tanto as de amizade quanto as conjugais. E, quando a educação não parte de dois modelos concorrentes, os filhos saem todos legais. Além disso, é uma estupidez achar que casamentos sem brigas são tediosos. Só é chata a vida entre duas pessoas se elas forem chatas. O tédio deriva da falta de reciclagem por parte dos cônjuges. Mas não quer dizer que as disputas favoreçam a relação.
ISTOÉ – Isso talvez derive da crença de que as disputas funcionam como estímulos sexuais para a maioria das pessoas. Gikovate – Isso não é uma crença. O sexo está acoplado à agressividade em nossa cultura – ele faz parte do domínio do demônio – e se complica um pouco nas relações de boa qualidade. Na nossa cultura, há inveja sempre que existe diferença. Freud falou na inveja do pênis pelas meninas. Na adolescência, os meninos passam a invejar o poder atraente das garotas. Aí, as meninas se tornam objetos de desejo e os homens ficam babando. É a origem do machismo e das piadas em relação às mulheres. O machão tem raiva e desejo pela mulher. Isso não significa que não pode haver sexo sem ódio.
ISTOÉ – Caminhamos para isso?Gikovate – Sim. O mundo moderno desvincula sexo de agressividade, apesar do sistema capitalista, que sonha com a infelicidade humana. A infelicidade dá dinheiro não só para os meus colegas (psicoterapeutas), mas também para a indústria. O ficar altera completamente essa relação de ódio e inveja. Na idade em que os meninos babavam pelas meninas, eles já as beijam. Pela primeira vez, um menino de 14 anos exerce sua sexualidade com alguém da mesma idade e da mesma classe social. Sem pagar. Os meninos não correm tão vorazes atrás das mulheres. Alguns pais às vezes trazem seus filhos para meu consultório com medo de que eles sejam homossexuais. “Não esquenta a cabeça, tio. Vai pintar”, dizem. Hoje, eles se dão ao direito de esperar que as meninas se aproximem.
ISTOÉ – O generoso no ambiente conjugal pode ser egoísta nos negócios?Gikovate – Isso é raro. Mas o generoso é esperto. Ele faz alianças de alta conveniência. Associa-se aos egoístas, que fazem as maracutaias, e ele se beneficia. O sócio é um safado que faz negócios ilícitos, mas ele aproveita odinheiro, sendo sempre o bonzinho. O generoso é um oportunista disfarçado.Dá uma casa bonita para a família mas mora nela. Diz que não se incomodaem morar em um “moquifo”, mas tem dificuldade de se separar e abrirmão da casa. É tudo espetáculo.
ISTOÉ – Por falar em espetáculo, Ronaldo e Cicarelli se encaixam no modelo? Gikovate – Olhando de fora, parecem dois egoístas que não agüentam ficar juntos mais do que serve aos interesses recíprocos. Talvez Ronaldo coloque mais seus interesses acima de tudo. Tenho a impressão de que a Milene (sua primeira mulher) era mais tolerante. Mesmo assim, ela não o agüentou. Daí ele arrumou uma que é da mesma categoria que ele. Três meses foi até muito. Não deu nem tempo de terem problemas ortopédicos (risos).