
Repudiada pela família, sem dinheiro, com medo de sair às ruas e manipulada pelos advogados, a jovem que participou do assassinato dos pais está mais perdida do que nunca
Especial Revista Veja - Juliana Linhares
A dois meses de seu julgamento, Suzane Louise von Richthofen vem a público pela primeira vez falar sobre o crime que cometeu: o assassinato de seus pais. Mais gorda, com os cabelos curtos e uma franja cobrindo parte dos olhos, ela recebeu a reportagem de VEJA com os cabelos desalinhados, calçada em pantufas e vestindo uma camiseta cor-de-rosa com estampa da personagem Minnie. Desde que deixou a prisão, Suzane, hoje com 22 anos, vive em um apartamento no bairro do Morumbi, em São Paulo, hospedada por um casal de amigos de seus pais a quem chama de "pai" e "mãe". Agarrada à mulher o tempo todo, comporta-se como se fosse uma criança pequena. Fala baixo e com voz infantil. Ao responder às perguntas, escondia o rosto atrás dos cabelos, mirava o chão e lançava olhadelas indagativas para seus advogados. Claramente foi instruída por eles para fazer o tipo frágil e desassistida. No esforço de evitar o que mais teme, a volta para a cadeia, onde ficou por mais de dois anos, Suzane tenta convencer seus interlocutores de que é uma menina perturbada – e que foi essa condição que a fez, em 2002, abrir a porta de casa para que o então namorado, Daniel Cravinhos, acompanhado do irmão, Cristian, entrasse no quarto de seus pais e os assassinasse a golpes de barras de ferro.
Será preciso convencer o júri de que Suzane não é a mesma pessoa que em 2002 foi descrita pelo delegado Domingos de Paulo Neto, que dirigia o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa de São Paulo quando do duplo assassinato: "Ela é fria, calculista e impetuosa". O que mudou? Certamente a temporada na cadeia, o isolamento dos amigos, o repúdio dos familiares e um eventual remorso tiveram efeito suavizante sobre a personalidade da jovem recém-saída da adolescência. Com toda a certeza, porém, ela pode estar usando as características descritas pelo delegado em 2002 para criar, sob a orientação dos advogados, uma persona vitimizada, carente e merecedora de pena. Não se pode prejulgar. Um júri será convocado com a específica finalidade de decidir o destino de Suzane.
O engenheiro Manfred Albert von Richthofen e a psiquiatra Marísia von Richthofen foram mortos na cama em que dormiam no dia 31 de outubro de 2002. Oito dias mais tarde, Suzane, Daniel e Cristian Cravinhos foram presos e confessaram o crime. Ao contrário de Suzane, os irmãos permanecem na cadeia. O julgamento dos três está previsto para junho. Todos responderão por duplo homicídio triplamente qualificado, o que, neste caso, significa: motivo torpe, meio cruel e impossibilidade de defesa da vítima. Daniel e Suzane ainda responderão por fraude processual e Cristian por todos esses crimes mais o de furto. Na ocasião do assassinato, Suzane cursava o 1º ano de direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Desde então, abandonou os estudos, o cabelo longo e boa parte da vaidade. Deixou de praticar esportes e trocou as blusas justas e curtas que gostava de usar por camisetas largas e compridas. Passa o dia trancada em casa. Pela manhã, ajuda a arrumar as camas e preparar o almoço. À tarde, assiste a TV – desenhos animados são seus programas preferidos – e brinca com os seis pássaros que a família que a hospeda cria soltos no apartamento. Vê novela, lava a louça do jantar e vai dormir. Por receio de que vizinhos protestem contra a sua presença no prédio – o que já chegou a acontecer há algum tempo –, seus protetores, que pedem que não sejam identificados, tratam o assunto quase que como um segredo. Nenhum dos membros da família a chama nem mesmo pelo apelido: "Su" virou "Rê". Nas poucas vezes em que deixa o apartamento, Suzane usa as escadas, em vez do elevador. O temor de ser "descoberta" é tanto que ela afirma não sair nem à janela. "Tenho medo de que eles queiram que eu vá embora daqui", diz.
Suzane não tem mais contato com suas amigas do colégio alemão Humboldt, onde estudou da 1ª série até o fim do ensino médio. Hoje, sua melhor amiga é uma advogada treze anos mais velha, Luzia Helena Sanches. A relação começou quando Luzia viu Suzane na TV e sentiu "que precisava conhecê-la". Trocaram cartas e hoje se falam todos os dias, por telefone, já que a advogada mora em uma cidade no interior de São Paulo. Luzia e Suzane se chamam uma à outra pelo mesmo apelido: "Gordão". Suzane diz que Luzia é a irmã que ela não teve. Quanto ao irmão de verdade, Andreas von Richthofen, hoje com 19 anos, a relação é tensa. Desde que os pais foram mortos, Andreas passou a morar com um tio, irmão de sua mãe. Ele chegou a visitar Suzane na cadeia algumas vezes, mas hoje os dois não se vêem mais. Eventualmente, falam-se por telefone, mas a conversa sempre termina em briga. Suzane é vaga quando fala sobre os motivos de seus desentendimentos com Andreas. "Acho que ele tem raiva", disse a VEJA. Já uma pessoa próxima a ela diz que a razão dos conflitos é a herança dos pais. Andreas estaria pressionando Suzane para que ela desista de brigar por sua parte no patrimônio dos Richthofen. O artigo 1814 do Código Civil Brasileiro prevê que filhos que matam seus pais perdem o direito à herança. A deserdação, porém, não é automática. É preciso que haja uma ação judicial pedindo a exclusão do herdeiro. A família de Marísia, com quem Andreas vive, já deu início ao processo. Suzane, por meio de seus advogados, pretende brigar para manter o direito à herança.
Foi por conta de um hobby do irmão, o aeromodelismo, que Suzane conheceu Daniel Cravinhos, em 1999. A família Richthofen estava no Parque do Ibirapuera, um dos cartões-postais de São Paulo, olhando Andreas brincar com seu avião, quando Daniel, também adepto da prática, começou a puxar conversa. Quando o namorico engatou, Manfred e Marísia não se importaram – acharam que era coisa passageira. Com o tempo, o namoro ficou sério e Daniel passou a freqüentar não só a casa da família, como o sítio do casal, no interior de São Paulo. Apesar das diferenças sociais – Daniel é filho de um escrivão aposentado e morava em um sobrado em um bairro de classe média baixa, nas proximidades do Aeroporto de Congonhas –, o namoro foi aceito pela família por quase três anos. Em seu depoimento à polícia, Suzane disse que o rapaz passou a ser uma "obsessão" em sua vida. "Queria estar sempre com ele, o tempo todo, o dia inteiro." Suzane enchia o namorado de presentes. Entre outras coisas, presenteou-o com um aparelho de som e um par de óculos de marca famosa no valor de mais de 1.000 reais. A família do namorado, de quem ela se tornou muito próxima, também mereceu agrados. Segundo um dos advogados de Suzane, a jovem trocou o piso da casa dos pais do namorado e comprou para eles uma TV e um aparelho de DVD. Tudo com dinheiro da sua mesada e escondido dos pais. Além disso, também teria pago algumas prestações de um carro Corsa para o namorado. Com Daniel, Suzane também conheceu as drogas. Os dois fumavam maconha quase todos os dias e experimentaram ainda ecstasy, éter e cola. Em meados de maio de 2002, o casal Richthofen decidiu proibir o namoro.
Na madrugada do dia 31 de outubro, Daniel e o irmão Cristian aguardaram que Suzane confirmasse que seus pais estavam dormindo e entraram com ela na casa dos Richthofen. Suzane guiou-os pela sala, subiu as escadas na frente e ficou aguardando que entrassem no quarto. Assim que entraram, ela acionou o interruptor de luz para facilitar a locomoção dos assassinos. Nesse ponto, afirma, desceu para a biblioteca. Manfred e Marísia dormiam. O primeiro a atacar foi Daniel, que golpeou Manfred na cabeça com uma barra de ferro. Em seguida, Cristian, com uma barra idêntica nas mãos, atingiu Marísia. Manfred desmaiou logo. Marísia, não. Ao ser atacada, acordou e tentou proteger-se com as mãos. Alguns de seus dedos foram quebrados com a violência das pancadas. Recebeu golpes na cabeça e no rosto. A certa altura, já agonizante, passou a emitir um som "parecido com um ronco", segundo relatou Cristian à polícia. Na tentativa de silenciá-la, o jovem pegou uma toalha do casal no banheiro e empurrou-a pela garganta da psiquiatra. Um dos ossos do pescoço de Marísia foi quebrado. Depois de constatarem que suas vítimas estavam mortas, Daniel colocou uma arma pertencente a Manfred, perto de seu braço, ao lado da cama. Depois, cobriu o rosto de Manfred com uma toalha. O de Marísia foi envolvido em uma sacola plástica de lixo, que havia sido deixada por Suzane na escada para que os irmãos depositassem as barras de ferro e suas roupas manchadas de sangue.
A moça disse à polícia que, enquanto os pais eram mortos, ela permaneceu no andar de baixo da casa, caminhando entre a sala e a biblioteca. Suzane afirma que, na maior parte do tempo, chorou, com os ouvidos tampados com as mãos. Teve, no entanto, suficiente sangue-frio para espalhar documentos e contas a pagar pelo chão da biblioteca, também ajudou os irmãos a arrombar, com uma faca, a maleta em que o pai escondia dinheiro e a colocar 8 000 reais e 5 000 dólares na mochila de Cristian. Embora soubesse o segredo da pasta, Suzane deduziu que o arrombamento daria mais veracidade à farsa. Depois do crime, Suzane e Daniel deixaram Cristian perto da casa dele e foram para um motel. No primeiro depoimento que prestaram à polícia, logo após o crime, os dois afirmaram ter mantido relações sexuais naquela noite. Mais tarde, mudaram a versão. Do motel, pegaram o irmão Andreas, que havia sido deixado por eles num cibercafé próximo à casa dos pais. Suzane entrou em casa junto com o irmão. Depois de simular surpresa diante dos indícios do "assalto", cumpriu o roteiro combinado com o namorado: na frente de Andreas, que nada sabia, ligou para Daniel pedindo ajuda e obedeceu a seu conselho de chamar a polícia.
O parricídio e o matricídio são crimes repudiados com horror por todas as épocas, etnias e sociedades. Na Roma Antiga, os homicídios eram punidos de diferentes maneiras, dependendo de sua gravidade. Nessa escala, o assassinato do pai pelo filho merecia a mais espetacular das punições. A Lei Pompéia sobre os Parricídios, criada em 55 a.C., dizia que aquele que matar seu ascendente não deverá ser submetido "nem à espada, nem ao fogo, nem a nenhuma outra pena solene". Deverá, no lugar disso, ser "encerrado em um saco de couro, juntamente com um cão feroz, um galo, uma víbora e uma macaca, e, nessas fúnebres estruturas, ser arrojado ao mar vizinho ou ao rio, para que em vida lhe cheguem a faltar todos os elementos, e, enquanto viva, seja privado da luz do céu, e, uma vez morto, da terra".
A peça Édipo Rei, escrita por Sófocles, tornou-se a mais famosa tragédia grega justamente por tratar desse crime tremendo que é o parricídio. A obra inspirou o pai da psicanálise, o austríaco Sigmund Freud, a tomar o nome de Édipo emprestado para designar o complexo que está na base do psiquismo e das neuroses: o desejo recôndito do menino pequeno de matar o pai, visto como rival amoroso em sua relação com a mãe, assim como o da menina pequena de eliminar a mãe. Eis por que o parricídio e o matricídio assombram tanto por serem crimes que, ao atentar contra um dos pilares da civilização, a família, ecoam uma essência humana atávica e incancelável. Quando ganham materialidade por decisão de uma menina que poderia ser a filha de qualquer um de nós, como Suzane, o horror aumenta. Tende-se, inclusive, a buscar uma explicação razoável para a atrocidade – algo que distancie a tragédia de nossas vidas, que nos dê a certeza de que só poderia acontecer com "eles". Foi assim no caso de Suzane. Chegou-se a dizer, por exemplo, que seu pai a espancava e abusava sexualmente dela – duas mentiras, conforme se provou. Suzane nunca foi uma vítima de sua família. Seus pais a amaram, contaram-lhe histórias quando era pequena e orgulharam-se de cada vitória que conquistou. Ela estudou em bons colégios, praticou esportes, aprendeu três línguas. Teve carinho, foi mimada e bem educada. O que não funcionou na educação dela, então? Impossível saber ao certo. Nesses casos, fala mais alto a espessa zona de mistério que envolve o cérebro adolescente, uma sopa fervente de hormônios, sensações, ansiedade, dúvidas e desejos. Os dois adolescentes americanos Eric Harris e Dylan Klebold não eram muito diferentes dos outros – até que, em 1999, mataram a tiros colegas e professores na escola, o que ficou conhecido como Massacre de Columbine. Por que isso ocorreu? Nunca se saberá ao certo.
O julgamento de Suzane e dos irmãos Cravinhos está previsto para o mesmo dia, 5 de junho. Os advogados Mário de Oliveira Filho e Mário Sérgio de Oliveira, contratados e pagos pela família que hospeda Suzane, ainda trabalham para que as sessões ocorram em dias diferentes. A justificativa é que a defesa dela e a dos Cravinhos são conflitantes: os irmãos afirmam que partiu de Suzane a idéia de cometer o crime. Ela culpa os Cravinhos. Além disso, os advogados de Suzane defendem a idéia de que o júri terá de usar critérios diferentes para julgar sua cliente e os outros assassinos. "Suzane não participou efetivamente das mortes", diz Oliveira. Se o esforço dos advogados der certo, o julgamento de Suzane deve acontecer apenas em julho. Seus advogados tentarão convencer os jurados de que Suzane foi levada pelo namorado a cometer os crimes. "Ela estava plenamente adequada à vida familiar, até que conheceu os Cravinhos, que já tinham histórico de banditismo e de uso de entorpecentes. Foi nesse momento que ela saiu de seu caminho", diz Oliveira Filho.
Suzane, que esteve presa entre novembro de 2002 e junho de 2005, tem pavor de voltar à cadeia. Até 2004, ela permaneceu na Penitenciária Feminina da Capital, no Carandiru, em São Paulo, onde era constantemente ameaçada pelas presas, já que crimes como o que ela cometeu são considerados abjetos mesmo por bandidos. Ela teve de ser transferida para uma penitenciária em São Carlos, no interior de São Paulo, depois que, numa rebelião, um grupo de presas tentou matá-la. Antes da entrevista a VEJA, os advogados de Suzane avisaram que ela não falaria sobre sua estada na prisão – o trauma teria sido muito grande. Em nenhum momento, no entanto, a reportagem foi solicitada a não falar com a jovem sobre o assassinato de seus pais. Nas diversas oportunidades em que o tema foi abordado, Suzane, acompanhada de advogados, esforçou-se para chorar. Não conseguiu em nenhuma das vezes. Na quinta-feira passada, diante de uma repórter da Rede Globo, chegou a simular um desmaio ao ser perguntada sobre o crime. É natural que advogados instruam seus clientes, inclusive a respeito da imagem que devem apresentar em público. E é também natural que, às vésperas do julgamento que vai decidir sua vida, Suzane concorde em obedecer às orientações de sua defesa. O que há de mentira e de verdade em suas ações e afirmações, no entanto, é algo que, talvez, nunca se saberá. Como também ficará no ar a dúvida a respeito da sinceridade da frase com que ela se despediu da reportagem: "Olha, eu amo muito os meus pais". Foi uma das poucas vezes em que Suzane olhou nos olhos da repórter.
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